terça-feira, 30 de junho de 2015

o divino dilúvio da alma

derruba-lata de minha infância
o sorriso árabe do pai vendedor de tecidos
a fotografia queimada pela mãe com seu relógio no pulso
a gente garoto em Bacabal
nove irmãos
trocando esmalte por xoxota
cama beliche
parede vermelha
telhado com goteira
e este mar iluminando a rica fartura de nossa pobreza
a mesma camisa remendada
o pão feito em casa
alcorão em cima da mesa
o olhar sobrenatural do avo
que nunca tirava o chapéu
gosto de arak na boca
narguilé escondido no rio
meu primeiro cigarro
eram guimbas que sobravam do carteado
luz que ilumina escuro debaixo da cama
toda família tinha que trabalhar na loja
alfaiate aos dezesseis anos
cresci e nunca abandonei o terno
homem sem paleto não existe
dizia papai enquanto o menino gargalha
a primeira surra
a segunda vez que fui a meca
uma mesquita no Paraguai proibida
dois quilos de haxixe marroquino
mais um livro de camus na mochila
devaneio chuva no minarete
e continuo detestando
tudo que se acha nobre
colecionava pedras
resto de jazigo numa caixa e dormia o sono dos indiferentes muito cedo
pois esta dor garatuja sequelas que transcendem o papel em branco
e se tudo muda
a medida que morre nasce de novo
cansado de tanto raspar o bigode
ama teu canto
contempla os portais de poeira
discursa o confrade
pisando em nossas terras
latifúndio super-faturado
minas de petróleo do sultão vizinho
os poemas do filho
eram feitos a sangue e a bala
ramo de oliveira no bico da pomba
estrondo no céu de nossa rua
herdeiro dos tais anéis de filigrana
teria bastante dinheiro
se comprasse todo meretricio
mudaria o ramo
sem essa de arte hereditária
o cachimbo ainda continua acesso
nem falta historia
inventa-se
o fluxo flutuante de toda palavra
ele diz
precisas aprender a convidar rapariga para um programa em árabe
teu olhar nômade
na vida de nosso povo nunca foi pálido
esquecimento
sempre foi escarro que volta
tua chance filho
vai ser atordoar o seculo
tens o verbo
o chicote na língua
o paladar que oscila
o divino dilúvio da alma

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